[Publicado na revista Relações Internacionais n.º 85 (março 2025), pp. 105-109 - AQUI]
Helen Thompson – Disorder: Hard Times in the 21st Century (1.ª ed. 2022), Oxford: Oxford University Press, 2023, 395 p. [ISBN 978-0-19-886501-8 (pbk.)]
Este livro, na sua 1.ª edição, foi publicado um mês antes da invasão da Ucrânia, em 2022; e dado que a autora identificava, na sua análise, a fronteira sudeste da União Europeia (UE) e o mar Negro como uma das zonas fulcrais de tensão geoestratégica, a obra mereceu uma 2.ª edição, com posfácio, em 2023, que é a aqui recenseada. Helen Thompson, professora de Economia Política no Clare College (Cambridge), é especialista nas repercussões geoestratégicas das questões energéticas e foi autora de Oil and the Western Economic Crisis (Palgrave Macmillan, 2017), além de ser colunista do New Statesman e membro do conselho consultivo do think-tank Labour Together. Em Disorder: Hard Times in the 21st Century, Thompson propõe a triangulação da sua temática de eleição com a da evolução do mercado financeiro global e a das tensões políticas nos regimes democráticos ocidentais no primeiro quartel do nosso século – embora faça recuos cronológicos que chegam a incluir conjunturas decisivas de todo o século XX.
A tese do livro é que as mudanças estruturais em torno da energia (em particular, do acesso a fontes de energia) e da finança (em particular, do acesso a uma moeda-padrão internacional) desencadeiam sempre consequências geoestratégicas tumultuosas e explicam a possibilidade ou viabilidade dos arranjos institucionais internacionais. E estes factos não são indiferentes à vida política interna dos Estados-nação, nomeadamente naqueles onde os mecanismos de poder democrático sofrem pressões destes fatores e geram respostas que interagem com eles.
Thompson lembra que a Europa, e os seus Estados-nação principais, tiveram no passado uma hegemonia euroasiática e global quando a sua tecnologia industrial emergente dependia do carvão, sendo este uma fonte de energia que os mesmos tinham nos seus territórios – e poderíamos acrescentar que esse fator pesou na marginalidade, dentro da Europa, dos países (como Portugal) que não partilhavam aquele “feliz acaso geográfico” (como lhe chamou K. Pomeranz em The Great Divergence, Princeton U. P., 2001); da mesma forma, o declínio da hegemonia europeia e a emergência dos Estados Unidos da América (EUA) e da Rússia no século XX estiveram intimamente ligados à substituição do carvão pelo petróleo em setores-chave da economia (como os transportes ou a indústria petroquímica), de que a Europa não dispunha, ao contrário dos dois gigantes em ascensão. E o aumento do consumo de petróleo, depois da respetiva transição energética, condicionou as opções geoestratégicas e a projeção de poder exterior dos Estados – o que esteve patente nos mandatos britânico e francês no Médio Oriente após 1918 (e no esforço de assegurar corredores marítimos necessários ao transporte do petróleo ali explorado), tal como, após 1945, na pressão que os EUA tiveram para assegurar os corredores marítimos que permitiam transportar o mesmo petróleo para um consumo a que a sua produção interna já não bastava e para o fazer chegar também aos seus aliados do lado de cá da Cortina de Ferro. Ora, nesta dependência de combustíveis fósseis crescentemente consumidos está também hoje a China (e a Índia), o que condiciona a sua projeção externa de poder (no mar da China e no Índico para acesso ao golfo Pérsico) e respetivos alinhamentos geoestratégicos (máxime com a Rússia, sua natural fornecedora por vizinhança geográfica). Por outro lado, estes mercados consumidores emergentes dão aos produtores (Arábia Saudita ou Irão, entre outros) alternativas de alinhamento, que explicam as maiores pressões sobre os países ocidentais naquela região do Globo.
Neste contexto, a autora dá atenção à geoestratégia dos gasodutos e oleodutos e às incompatibilidades que esta gera entre membros da UE, e que são uma séria ameaça à sua coesão ou capacidade de ação comum. Thompson mostra a historicidade destes problemas e que, por exemplo, a opção alemã pela dependência de fornecimentos russos é antiga (e de forte lógica geográfica e de custos) e que isso tem articulação difícil, não só com os interesses dos EUA, mas também com os de outros países europeus (sobretudo os que rejeitam voltar a uma “esfera de influência” de Moscovo). A isto acresce, como Thompson reforça, a fragilidade europeia perante a nova transição energética (não imposta por exaustão de recursos ou por uma transição tecnológica vantajosa, mas pela “agenda climática”), uma vez que a distribuição geográfica das matérias-primas necessárias às tecnologias energéticas “verdes” volta a deixar o Velho Continente inteiramente dependente – além do facto de ser evidente que o consumo global de energias fósseis continua a crescer claramente, e a dita transição não começou sequer. Nesta conjuntura, o fecho do programa nuclear alemão motiva perplexidade e torna pouco claro como poderá gerar-se um alinhamento estratégico na UE no campo das escolhas energéticas.
Uma das teses do livro é que estes problemas ocorrem numa conjuntura em que o poderio norte-americano está (re)consolidado em torno de uma (quase) autonomia energética dos EUA – no que o petróleo de xisto tem peso significativo – e na herança da função do dólar como moeda-padrão internacional hegemónica. Esta função do dólar não se originou apenas na “ordem” de Bretton Woods nem no facto de os EUA serem, na primeira metade do século XX, o grande gerador de capitais de que uma Europa arruinada pelos dois conflitos mundiais por si criados se tornou dependente; originou-se, sim, nos caminhos tomados pelo mercado de capitais no segundo pós-guerra, fugindo ao controlo dos Estados (incluindo os EUA) e ligado aos mecanismos de criação de moeda escritural pela banca (nomeadamente europeia), denominada em (ou ancorada nos) dólares exportados diretamente pelos EUA ou pelos seus títulos do Tesouro também espalhados pelo Mundo (adotados como valor-refúgio) cujo giro suportou um cada vez mais complexo repo market de revenda e/ou empréstimo destes valores como forma de transação ou empréstimo interbancário de capitais, a que os Estados (mais e menos desenvolvidos) frequentemente também recorreram para se financiarem. Esta “alquimia” monetária e financeira, como caracterizada por Niall Ferguson e Moritz Schularick («Chimerica and the Global Asset Market Boom», International Finance, 10:3, 2007), esteve na origem da crise de 2007-2008, de que o subprime norte-americano foi um detalhe, e não podia ser “controlada” por Estados que a incentivavam ou por ela se financiavam. Thompson acompanha também, circunstanciadamente, a história do sistema monetário europeu, e a sua geografia variável de adesões e fricções, para mostrar como, dentro dele, se mantêm disfunções potenciais e tensões vulneráveis a fatores externos e/ou globais.
A entrada clara e definitiva da China no comércio mundial, no início do presente século, implicou que se engrenasse neste mercado de capitais globalizado maioritariamente denominado em dólares. Esse mercado, como Thompson explica (mas alguns dos seus críticos não compreendem – cf. Matthew C. Klein, «How To Get Recent History All Wrong», Foreign Policy, 7-5-2022), sempre foi localmente influenciado por decisões políticas que nele interferiram e interferem. Foi assim na UE, onde o potencial de endividamento público e privado por meio deste mercado de Eurodólares foi apoiado por políticos (desde Kohl) e pela banca (incluindo a alemã), vencendo a disciplina institucional do pós-guerra pressuposta no padrão-ouro do dólar (abandonado em 1971, mas sob pressão antes) e no mandato anti-inflacionista do Bundesbank (ignorado em Bona/Berlim depois da reunificação). Aliás, Thompson reporta bem a guerra de políticos e banqueiros alemães com o Bundesbank e o Tribunal Constitucional (sobretudo em torno da negociação dos tratados de Maastricht e Lisboa). E foi assim na China, a qual reforçou e expandiu esta tendência, acumulando reservas denominadas em dólares – graças ao seu superavit comercial e à atração de investimento estrangeiro –, que suportou internamente uma expansão dos balanços e do crédito bancários, mas também as intervenções monetárias maciças do banco central após a crise de 2007-2008 (para “reparar” aqueles balanços). O investimento brutal em estruturas de capital fixo (e a capacidade produtiva) que daqui resultou permitiu que as exportações chinesas baixassem globalmente os preços dos bens, moderando as tendências inflacionistas globais. Mas esse movimento está em refluxo (ou exausto), o que é evidente no declínio do crescimento chinês e na manipulação do câmbio do renminbi com o dólar, gerido conjunturalmente por Pequim, para evitar uma fuga de capitais e preços menos competitivos, que pode já estar a acontecer e a incentivar Xi Jinping a querer sair da “armadilha do dólar” e a virar-se para o consumo interno, isolando mais a China da sua exposição global (como advoga Russell Napier, «America, China, and the Death of the International Monetary Non-System», American Affairs, 8:4, 2024).
Thompson argumenta que, no mundo condicionado pelas problemáticas acima enunciadas, o Estado-nação mantém-se como a unidade política fundamental (nenhum Estado-nação foi destruído pela experiência comunista e a Guerra Fria terminou com uma nova “primavera das nações”, que incluiu a própria autodeterminação alemã patente na reunificação); e, recorrendo a Políbio, Maquiavel e a alguns exemplos históricos, lembra que isso se articula com a gestão de um equilíbrio (interno às diferentes sociedades) entre tendências demagógicas e oligárquicas que determinam o maior ou menor consenso interno ou a saúde institucional dos regimes políticos. E todo o livro pretende mostrar como os problemas energéticos e financeiros pressionam a procura desse equilíbrio. A autora adverte, por isso, que os tempos desafiantes do presente século exigem uma flexibilidade de decisões e ajustamentos à realidade de difícil gestão fora do quadro do Estado-nação – sobretudo num bloco institucional multinacional englobando diferentes interesses e perceções geoestratégicas como a UE.
Luís Aguiar Santos Doutor em História Económica e Social pelo ISEG/Lisbon School of Economics and Management (UL) e investigador do GHES/ISEG Research (UL).